9 de outubro de 2024

ORIGEM, USO HISTÓRICO OFENSIVO DO TERMO PARDO E A SUA REAL POSIÇÃO NO ESPECTRO DE IDENTIDADES NO BRASIL E AMAZÔNIA

Quem é o pardo?
Montagem BlogdoJuarezSilva

Em meio à reiteradas e persistentes polemizações com relação ao termo pardo e sua aplicação identitária, faço este breve texto situador.

O NEGRO

Importante antes de partir para o conceito de pardo em si, destacar que tal compreensão não é possível sem antes apreender o conceito de NEGRO, que ao contrário do entendimento popular não é sinônimo de africano ou preto, era sim de ESCRAVO/ESCRAVIZADO e foi aplicado oficialmente na história brasileira.

E isso tanto aos primeiros escravizados, os indígenas e descendentes, então chamados “NEGROS DA TERRA” até 1755/58, quanto aos africanos e descendentes, tratados por “NEGROS DA GUINÉ”. Portanto, ambos grupos compartilham origens “negras” em tal sentido. Isto é, negro não é cor, a cor é preta, NEGRO é na verdade origem social, hoje no entanto entendida como referente apenas aos descendentes do tráfico negreiro transatlântico, ainda passíveis e vítimas de discriminação, independente de óbvia miscigenação ou não, ou seja, pretos e pardos mais óbvios.

Negros da terra

PARDO, O TERMO

Isso entendido, para além de outras questões históricas de agrupamento de pretos e pardos, como as unidades militares segregadas de pretos e pardos na colônia e império, irmandades religiosas, restrições legais como a do “defeito de cor” que exigia a “súplica da dispensa de defeito”, podemos nos concentrar nas origens do termo pardo e seu uso histórico, por meio de algumas obras:

1. “O Pardo no Brasil: Entre a Cor e a Condição” de Lilia Moritz Schwarcz:
Este livro explora a história do termo “pardo” no Brasil, desde a colonização até o século XX.
Schwarcz argumenta que “pardo” era originalmente um termo usado para descrever pessoas de cor miscigenada, mas que ao longo do tempo, adquiriu um significado mais negativo, associado à escravidão e à inferioridade racial.
Ela também menciona a possível ligação entre “pardo” e “pardal”, como forma de desumanizar e inferiorizar pessoas de cor.

2. “Raça e Cor na Literatura Brasileira do Século XIX” de Eduardo de Assis Duarte:
Este livro analisa como a raça e a cor eram representadas na literatura brasileira do século XIX.
Duarte menciona que o termo “pardo” era frequentemente usado para descrever personagens pretos ou miscigenados.
Ele também menciona que “pardal” era usado como um insulto para se referir a pessoas de cor.

3. Mayara Aparecida de Almeida em seu VOCABULÁRIO DA ESCRAVIDÃO NO BANCO DE DADOS DO “DICIONÁRIO HISTÓRICO DO PORTUGUÊS DO BRASIL – SÉCULOS XVI, XVII E XVIII” cita em dicionários antigos e modernos os verbetes sobre o termo pardo:
Bluteau (1712-1728)
PARDO. Cor entre branco, & preto, propria do pardal, donde parece lhe veyo o nome. […] Homem pardo. Vid. Mulato. (p. 265, v. 6).
Silva (1789)
PÁRDO, adj. De còr entre branco, e preto, como a do pardal. § Homem pardo; mulato. (p. 398, v. 2)
Vieira (1871-1874)
PARDO, A, adj. Que tem côr intermediaria ao branco e ao preto, á similhança do pardal. […] – Homem pardo; mulato. (p. 662, v. 4)
Houaiss (2009)
1Pardo adj. (sXIV) 1 de cor escura, entre o branco e o preto 2 branco sujo, escurecido 3 de cor fosca e que pode variar do amarelo ao marrom escuro <envelopes p.> <algas p.> 4 diz-se dessas cores <tecido de cor p 7 m.q. mulato ¤ ETIM lat.imp. pardus,i ‘leopardo’, emprt. do gr. párdos ‘id.’ ¤ SIN/VAR esbramado, pardacento, pardaço, pardento, pardilho, pardusco; ver tb. sinonímia de mestiço e mulato.
DHPB (2021)
pardo2 s.m.
Homem de cor entre branco e preto; mulato; mestiço.

4. Mayara Aparecida de Almeida, autora do Dicionário Histórico do Português Brasileiro também diz”
“a predominância da animalização do homem negro no significado de termos como cabra, pardo (que tem origem no pássaro pardal) ou mulato (em mula). Por conta disso, hoje em dia, opta-se por não utilizar esses termos, uma vez que no passado eles foram empregados para colocar essas pessoas na condição inferior ao homem branco, como animais mesmo” (Mayara Aparecida de Almeida, autora do Dicionário Histórico do Português Brasileiro).

5.Luciano Guimarães Pereira na Dissertação na UFOP, A Defesa da Honra: processos de injúria no século XVIII em Mariana, Minas Gerais, observa :
“O Sargento-Mor José de Souza Cunha Meneses, após falar de suas virtudes, passou a criticar seus adversários. Sobre Manoel Correa Borges, alega que é ‘ plebeu e de humilde e vil nascimento por ser um pardo, e que há poucos dias saiu do cativeiro, filho de uma preta escrava, que foi de Mathias Correa Pinto, e também filho ou neto, segundo dizem, pela razão de que tendo aquele Mathias Correa trato ilícito com mulheres escravas, com as mesmas também se tratavam ilicitamente seus filhos’.
Um alegado branco e cristão velho apontar a origem negra do opositor é esperado, mas Catarina Gonçalves de Miranda era negra, “oriunda do gentio da Guiné” e terminou seu libelo frisando que ‘antes queria perder dois mil cruzados, ou deixar de os ganhar do que ver-se tão atrozmente injuriada, sendo o réu homem pardo, a quem o direito considera muitos defeitos.’
Pardo e mulato são termos que designam miscigenação. Pardo é a cor do pardal, pássaro reputado como inútil. Mulato vem de mula, animal resultado do cruzamento do cavalo com a burra ou do jumento com a égua. Parece que mulato foi tomando mais a característica de um xingamento.”

6. Luiz Gama, miscigenado de branco e preta livre e nascido livre, foi escravizado aos 10 anos, vendido pelo próprio pai, o que foi possível pela sua condição fenotípica de pardo, na época também dito “bode”, o que não lhe retirava a condição de “negro”. Como o próprio Gama diz na poesia satírica “Primeiras Trovas burlescas de Getulino” em 1859, ” Se negro sou, ou sou bode Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta… Há cizentos, há rajados, baios, pampas e malhados[..] Aqui, nesta boa terra, Marram todos, tudo berra; ”

O PARDO NO CENSO

O termo ganha uso censitário nacional partir do primeiro censo realizado em 1872.
Veja o que diz PETRUCCELLI, especialista da UNESCO com anos de experiência no IBGE:

“Era a partir da SEPARAÇÃO ENTRE HOMENS LIVRES E ESCRAVOS que o perfil daquela sociedade recebia seus contornos mais nitidos e SE PROJETAVA NO CENSO DE 1872. [..]
a condição de escravos. Diferenciados dos habitantes de condição livre com origem africana, por naturalidade ou descendência, foram classificados maioritariamente como pretos, ou como pardos, na operacao censitária. Por outro lado, contava-se com um razoável contingente da POPULAÇÃO NEGRA LIVRE na época, CLASSIFICADA COMO DE COR PARDA em sua maior parte. HAVIA, então, uma FORTE IDENTIFICAÇÃO DE PRETO COM ESCRAVO, pela sua extensa justaposição, E DE PARDO COM LIBERTO OU DESCENDENTE DE ESCRAVO, produto do longo processo colonial de “mistura racial” da populacao euro-descendente com africanos e crioulos.” (PETRUCCELLI, 2004, p.3).

A categoria pardo não se confundia originalmente com a destinada aos indígenas e descendentes, esta categoria era a CABOCLO.

Análise censo 1872

Interessante ver a evolução censitária nesse sentido:

“As categorias “parda”, “mestiça”, “cabocla “indígena” tiveram intersecções, inclusões, exclusões e substituições ao longo do tempo. Nos censos de 1950 e 1980, a categoria “parda” englobava “indígenas”, e, em 1960, somente “indígenas” fora dos aldeamentos. A categoria “cabocla”, que, em 1872, compreendia os indígenas, seria, nos censos seguintes, subsumida na categoria “parda”. Da mesma forma, a categoria “mestiça” foi subsumida na categoria “parda”. Mas, em 1890, substituía a “parda” de 1872, incluindo somente os filhos de “pretos” e “brancos”, excluindo outros casos de miscigenação (Camargo, 2010, p. 235).”

Fig 1-2. Classificações raciais utilizadas nos censos nacionais no Brasil — 1872-2010

Censos1fonte: A questão sobre “cor” ou “raça” nos Censos nacionais. Indic. Econ. FEE, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 103-118, 2013

Além de censos não realizados (1880,1900 1910,1930) tivemos dois sem o quesito cor (1920 e 1970). Também fases em que a categoria branca absorveu os não-negros, bem como a categoria parda teve forte foco residual como nos 80 e 90: “A orientação ao entrevistador é a seguinte: “[…] considerar […] Parda, para as [cores] diferentes de branca, preta e amarela, tais como: mulata, mestiça, índia, etc.” (IBGE, 1980, p. 1). “Será assinalado o retângulo Parda para as declarações diferentes de branca, preta, amarela ou indígena, tais como mulata, mestiça, cabocla, cafuza, mameluca, etc.” (IBGE, 1990, p. 60).

No entanto, a consideração da conveniência do agrupamento de pretos e pardos enquanto população negra, já estava indicada em estudos acadêmicos e do próprio IBGE desde 1974, tendo experimento em 1976 na PNAD.

Em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial em consonância com os estudos do IBGE, estudos acadêmicos externos e também demandas históricas dos movimentos negros, deu entendimento e reconhecimento legal da população negra como sendo a soma dos autodeclarados pretos e pardos. O que se não contempla as aspirações e pertenças de todos, é eficiente para a maioria, na maioria do país.

A QUESTÃO AMAZÔNICA

É importante destacar que sim a Amazônia tem uma especificidade. Ao contrário do restante do país, a maioria da população que se autodeclara parda é visivelmente pela fenotipia, de origem indígena, não afro.

Apesar da região ser a maior geograficamente é a menos populada, todo norte brasileiro, com sua peculiaridade é menos que 10% da população brasileira.

E isso causa  leituras imprecisas do pertencimento étnico racial na região, estranhamento, reações e negativas de pertencimento e acusações de “apagamento étnico-racial”.

Na verdade se isso ocorre, é primeiro porque a política censitária é feita para tentar atender as especificidades da maioria do país. Na maior parte da história do censo a categoria pardo foi residual, agrupando os que não eram majoritários ou muito definidos, caso das categorias cor branca e preta,  que sempre estiveram presentes em todos recenseamentos. Desde 1991 com a definição da categoria indígena, apenas para os etnizados, e mais tarde o reconhecimento definitivo da categoria parda como parte da população negra, o sentimento de “limbo” de identidade da maioria dos “pardos amazônicos” se acentuou.

Agravado principalmente pelas políticas afirmativas, como as cotas universitárias e no serviço público, já que as cotas especificamente sócio-raciais são previstas para negros (pretos e pardos) e para indígenas (etnizados).  Apesar de não haver distinção entre pardos de origem indígena e origem africana na legislação, o entendimento fenotípico de negro (critério único na heteroidentificação) na sociedade atual remete aos afrodescendentes, não aos pardos de ancestralidade visivelmente indígena. E aí surge o inconformismo dos que apesar de pardos, não se enxergam ou são enxergados como negros, tampouco podem se beneficiar da condição de indígena.

Cabe também lembrar, que apesar da óbvia predominância na origem indígena dos “pardos amazônicos”, ela não é absoluta, exclusiva, nem autoexcludente. Boa parte dos pardos da região tem sim origem africana ou mesmo ambas.

A situação tem no entanto uma base histórica não sabida pela maioria, e que pode explicar a questão da não afirmação de “pardos indígenas”.

A BIFURCAÇÃO

Negro-indio

Já falamos que até 1755/58, quando ocorreu a efetiva abolição da escravidão indígena, tanto indígenas escravizados e descendentes quanto africanos escravizados eram oficialmente NEGROS, os indígenas “Negros da terra” e os Africanos “Negros da Guiné”, ou todos simplesmente negros.

Faltou lembrar que no ato pombalino da abolição da escravidão indígena, o uso de NEGRO se tornou proibido em relação aos indígenas e descendentes. E não apenas isso, foi feita toda uma habilitação social para estes, o que não ocorreu com os de origem africana, escravizados ainda mais 130 anos e sem qualquer afirmação ao final, veja parte do texto:

Lei real datada de 7 de Junho de 1755, tratando de ordenamento de relações estatais e sociais nas “Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão” (o que incluía toda a Amazônia):

“10 – Entre os lastimosos principios, e perniciosos abusos, de que tem resultado nos Indios o abatimento ponderado, he sem duvida hum delles a injusta, e escandalosa introducçaõ de lhes chamarem NEGROS ; querendo talvez com a infamia, e vileza deste nome, persuadir – lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa de Africa. E p orque, além de ser prejudicialissimo á civilidade dos mesmos Indios este abominavel abûso, seria indecoroso ás Reáes Leys de Sua Magestade chamar NEGROS a huns homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar por isentos de toda, e qual quer infamia, habilitando- os para todo o emprego honorifico: Naõ consentiraõ os Directores daqui por diante, que pessoa alguma chame NEGROS aos Indios, nem que elles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavaõ; para que comprehendendo elles, que lhes naõ compete a vileza do mesmo nome, possaõ conceber aquellas nobres idéas, que naturalmente infundem nos homens a estimaçaõ, e a honra. ” (Apud ALMEIDA , 1997)

Aliás, em lei pouco anterior, em que se fomentava o casamento de portugueses com as indígenas, o próprio termo “Caboclo” foi banido e a sua utilização apenada gravemente, vejamos o trecho final:

Alvará Régio de 4 de abril de 1755
[..] E outrosim proibo que os ditos meus vassallos casados com Indias, ou seus descendentes, sejaõ tratados com o nome de Caboucolos, ou outro similhante, que possa ser injurioso;

No entanto, essa  última lei parece não ter pegado, passando por resignificação e indo inclusive pouco mais de século depois, o termo parar no censo, em 1872. De qualquer forma fica claro que os indígenas assimilados e descendentes, foram por esforço estatal tornados “brancos sociais”, com uma “protocidadania”,  naquela ocasião. Coisa que após 130 anos, com as leis de abolição da escravidão no Amazonas em 1884 ou lei Áurea em 1888 , não houve com os negros de origem afro. Tampouco em mais 130 anos dos pós-abolição. Reconhecimento estatal e prático de afirmação, só começa a ocorrer no século XXI. Isso certamente causou um descompasso social entre os “pardos” descendentes de uns e de outros, muito embora os indicadores sociais gerais da maioria sejam parecidos, as representatividades práticas na sociedade não.

Isso no entanto não impede o aproveitamento das ações afirmativas por critérios sociais para os pardos de origem indígena, eventualmente também as sócio-raciais, vez que boa parte destes também tem origem africana presentes nos traços, ou podem receber o “benefício da dúvida”.

CONCLUSÃO

Fica claro portanto que o termo pardo e a estreiteza do seu uso em relação à população negra e em especial a de origem africana, hoje também dita afrodescendente, que reúne os de cor preta e parda, é histórica, não produto de qualquer “apropriação indevida” pelos movimentos negros ou qualquer “apagamento” moderno.

Para quem sendo pardo for “insuportável” fazer parte da população negra, por “filtro e preferência”, penso justo e apóio totalmente buscar junto aos povos originários o desejado acolhimento, ou ao menos o apoio destes para a conquista de uma nova subcategoria “indígena não etnizado” ou “originariodescendente”. Porém não a criação de categoria “meista”, anticientífica e anacrônica, tampouco a “tomada” ou invalidação de uma categoria histórica e legalmente reconhecida como parte da população negra/afrodescendente.

 

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