Um defeito de cor, a “alma branca” e o ataque da “parditude”

Não é a primeira vez que escrevo sobre o assunto, mas o contexto obriga a uma versão mais atualizada.
O DEFEITO DE COR
A expressão “Defeito de cor” é desconhecida da maioria dos brasileiros, ou ao menos era até o desfile de carnaval da Portela em 2024. No entanto, parece não ter havido muita ênfase no seu significado estrito, histórico e implicações do “defeito” na mobilidade social negra, ainda nos dias de hoje. Isso sem falar em outras conexões menos óbvias, mas conveniente lembrar no momento.
No final do antigo regime, ou seja, quando a família real veio para o Brasil em 1808, ainda vigorava a regra das ordenações filipinas do “defeito de cor”, portanto um impedimento legal. A pessoa negra (preta ou parda) nascida livre ou liberta/forra, que quisesse e estivesse capacitada para uma função “melhorzinha”, por exemplo no conjunto estatal, ou eclesiástico, tinha que formular e assinar um documento chamado “súplica da dispensa do defeito de cor”. No qual o suplicante e se dizia instruído, boa pessoa, temente à Deus e de acordo com o sistema, e sendo assim, dirigia súplica para desconsiderarem seu “defeito/acidente de nascimento”.
O NEGRO DE ALMA BRANCA
Ao fazer a súplica, praticamente dizia ter a “alma branca” e como tal agiria (inclusive como linha auxiliar na repressão e desprezo aos outros negros) ao desempenhar função e ser melhor “aceito” socialmente. Aliás, “preto ou negro de alma branca” foi a única expressão que apesar de partir de um pressuposto hoje entendido como claramente racista, não tinha intenção injuriante, mas sim de “elogio” à uma pessoa negra, e isso no Brasil tem registros desde o século XVII, por exemplo na referência à Henrique Dias.
Hoje não se faz nem assina a tal súplica, mas uma versão silenciosa do tipo de pacto para obter a mobilidade social parece ainda permanecer em muitos casos…
O ATAQUE DA “PARDITUDE”
Há tempos e hoje com fôlego renovado, assistimos uma movimentação antagônica à negritude, o conjunto de sentimentos de pertencimento, ações de valorização e afirmação da estética, cultura e direitos dos africanos e afrodescendentes (estes últimos, os ditos negros, produto do tráfico negreiro e escravidão). Logo, algo tanto “pan-africano” quanto em contextos nacionais.
Essa movimentação antagônica à negritude, é a “parditude”, que apesar de aparentemente apenas buscar eliminar uma sentida e alegada situação de “limbo étnico-racial”, na verdade tem mais a ver com uma tentativa de fuga da estigmatização de ser negro. Buscando para tal marcar a condição de pardo como uma providencial “coluna do meio”, que na impossibilidade histórica e cultural de admissão na branquitude, ou na condição de indígena étnico, busca ao menos uma identidade e agrupamento social deslocados dos pretos, os mais estigmatizados na estrutura cor/classe.
Historica e culturalmente pretos e pardos compõem à população negra (bom lembrar que negro não é nem era cor, mas condição de escravizado, à que primeiro e concorrentemente por séculos também foram submetidos os indígenas e descendentes, então chamados “NEGROS DA TERRA” até 1755/58) . População Negra como a soma de pretos e pardos é situação inclusive legal e reconhecida por meio do Estatuto da Igualdade Racial, de 2010.
Logo, entendemos que a ideia central da “parditude” é na verdade “escapar” do rótulo estigmatizado e de oficialmente pertencer à população dita negra, tentando estabelecer a categoria pardo como uma identidade independente, mais “socialmente próxima” da hegemonia, ou mesmo indígena.
Não vou me alongar sobre a impossibilidade disso pelo conceito antropológico cultural e universal da hipodescendência (não confundir com o racista “one drop rule’) e da impossibilidade teórica da ideia biológica de “mestiço”. Uma vez que hoje é sabido que TODOS humanos pertencem à uma única e mesma espécie/raça, a homo sapiens, e não há pela mais simples lógica “mestiços” nos cruzamentos entre a mesma espécie/raça… .
CONCLUSÃO
Lembramos que sob a mesma origem e história de escravidão e o mesmo impedimento do “defeito de cor”, tanto pretos quanto pardos viveram oficialmente durante séculos, e hoje ainda juntos enfrentamos as consequências dessa história comum, nossa identidade negra/afrodescendente, que já foi chamada também de “homens de cor”.
Nossa identidade negra não será apagada, nem subtraída por gente que tenta fugir do estigma de se assumir negra e não pode e nunca poderá ser “branca”, tampouco indígena étnica. Sobra-lhes o caminho de negociar com esses últimos, acolhimento e uma subcategoria relacionada que lhes seja mais confortável, mas garantimos que não será “tomando” a categoria pardo e destruindo as décadas de trabalho de conscientização, unificação e luta negra… .
Cabe citar Luiz Gama, o negro pardo destacado no enredo “Um defeito de cor”: vide o texto “Emancipação”, publicado pela Gazeta do Povo em 1º de dezembro de 1880. ‘Em nós, ATÉ A COR É UM DEFEITO, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam ; que esta cor convencional da escravidão, (…) à semelhança da terra, (a)través da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.’
E também no poema satírico Primeiras trovas burlescas de Getulino: ” Se negro sou, ou sou bode Pouco importa. O que isto pode? Bodes há de toda a casta, Pois que a espécie é muito vasta… [..] Aqui, nesta boa terra, Marram todos, tudo berra; ”
Uma outra boa sacada de lucidez bem humorada, de que importa mais o que histórica e socialmente nos une enquanto “negros” ou “bodes” (pardos) do que filigranas de tom de pele, origem parcial ou “casta”.