9 de outubro de 2024

ÁFRICA, CUBA E BRASIL: OS ORÁCULOS DE IFÁ E OUTRAS QUESTÕES

Awofakan Juarez Silva OSHE DI

Como meu lugar de fala é de historiador e estudioso independente, essa é a visão que em mim prevalece com as pitadas de Abian velho e Awofakan, não de sacerdote ou “teólogo”.

Toda tradição é uma invenção…, logo, não é monolítica, homogênea e aceita universalmente, também não contém apenas “verdades absolutas”. Houve “fluxo e refluxo” religioso entre África e diáspora, mas pouco daqui para lá, o contrário sim.

Em África os cultos ancestrais são por cidade e até família, diferente do que precisou ser organizado aqui a partir do século XIX, com a criação do Candomblé, antes havia uma situação diferente e desorganizada, especialmente no Rio chamada de CALUNDU (de “pessoa tomada por espírito”).

Em Cuba aconteceu algo parecido, mas óbviamente com diferenças, ao invés de Candomblé lá surgiu a “Regla de Osha-Ifá” uma situação bem mais sistematizada e por escrito. De qualquer forma nenhum atravessou o Atlântico e os séculos sem alterações e adaptações, tampouco permaneceu em África da mesma forma.

Desde o XIX houve trocas sim, de gente indo da Bahia para a África e voltando, e também de alguns outros lugares, mas mais traziam do que levavam, e adaptavam para a condição diaspórica. Dito isso, não é impossível por exemplo que o uso oracular de côcos já existisse na Nigéria e região em situação peculiar, em concorrência com as sementes do dendezeiro, obis e os  búzios que foram “contrabandeados” para Cuba nos corpos dos escravizados (tipo material que entra hoje nas prisões… 😉).

Até porque os escravizados antes de serem embarcados não sabiam se tinha côco por aqui, mas na dúvida os Ikins, obis e “caracoles” deveriam parecer ser bem melhor opção…, pelo menos enquanto não se estabeleceu o comércio transatlântico de itens relacionados .

Os búzios entram na história do Candomblé (uma invenção afro-brasileira) num desses refluxos à África. Uma alternativa de oráculo simplificado para que as Yalorixás pudessem acessar Ifá, uma simplificação do antigo e complexo sistema operado com opele é atribuída junto com Mãe Aninha e outros, principalmente ao Babalawo Felisberto Américo Sowzer( 1877-1943) também conhecido como Benzinho Bamgbose, neto do famoso Bamgbosè Obitikò e filho do também babalawo Eduardo Américo de Souza Gomes, um africano natural de Abeokuta, onde nasceu em 1833, Bamgbose é uma família de poderosos homens e mulheres de Axé de longa data no Brasil.

Vários foram os Babalawos nesse trânsito Brasil-África como Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1943) que  foi um babalawo brasileiro, nascido na Bahia. Seu nome africano era Ajimudá. Mais conhecido por Ojé L’adê. Nasceu livre, filho de um “africano livre” (escravizado libertado do tráfico já ilegal) que se tornou um comerciante e uma ex-escravizada. Aos 15 anos, acompanhou seu pai em viagem para Lagos, na Nigéria. Passou 11 anos por lá se educando e retornou à Bahia em 1886, tornando-se uma respeitada personalidade da comunidade afro-baiana. Martiniano levou o Ifá também à Pernambuco, onde era operado pelo famoso Pai Adão, referência histórica do Xangô.

O Brasil até “exportava” Babalawos para a África, caso de José Felipe Meffre, também filho de Babalawo, que levando todas as suas “coisas de Ifá”, em 1850 consultava em Lagos na Nigéria.

Portanto, em termos históricos o oráculo do Candomblé (búzios ou meridilogum) não é uma coisa que se pode afirmar vinda e disseminada nos primórdios da escravidão no Brasil (até porque Bantus chegam muito antes dos Iorubás…) e usada “desde sempre”, Ifá pertencia até então quase completamente aos Babalawos nacionais… que “se extinguiram” em meados do século passado.

Com relação à questão feminina, de certo os afrocubanos tiveram influências ocidentais (porém latinas…) no tocante a “reservas de poder”, não quer dizer que os africanos do Ifá não tivessem “reservas de gênero”. Porém como sabido eles também tiveram que se reconstruir “recentemente” mas em um contexto diferente do latino, o que levou a mudanças e “flexibilizações” em “contextos de demanda” ao também passarem a interagir com a diáspora, como explicado pelo meu padrinho.

Em outro ponto, a matriarcalização dos cultos no Brasil se tornou ainda mais evidente com o fim dos últimos Babalawos da tradição brasileira nos idos dos anos 50 do XX.

Com o retorno do Ifá via cubanos, só iniciado depois de um hiato geral de coisa de 40 anos no Brasil, natural que recebessemos toda a cultura do Ifá com pinceladas ainda mais ocidentais e latinas… . O “choque” com  o candomblé, que já mal lembrava dos babalawos e Ifá, e a “neo tradição” nigeriana, chegada mais recentemente não é surpreendente, assim como entre cristãos há “concorrências” 🤷🏿‍♂️

Ah! Mais um detalhe, assim como a Bíblia recebeu aportes e exclusões seletivas ao longo da configuração do catolicismo e depois do protestantismo, nada garante que a sistematização feita em Cuba também não tenha sofrido “intervenções morais”, já o modelo por muito tempo apenas oral nigeriano, é o que chamamos em história de “memória”, que por sua vez também é muito sujeito a deturpações, intencionais ou não, mas é… .  Enfim, fé é acreditar, e cada um acredita e prática o que lhe parece mais razoável 🤷🏿‍♂️.

Juarez Silva OSHE DI é estudioso de  História e Cultura africana e afro-brasileira, há mais de 3 décadas, Mestre em História Social, Abian velho do Candomblé Keto e Awofakan no Ifá de tradição afro-cubana no Ilê Ifá Obedande Ifairawo (Pedra de Guaratiba -RJ)

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