10 de setembro de 2024

 

“ ‘Quem ignora que a primeira lei da história é não dizer nada falso? E a segunda, ousar dizer toda a verdade?’  perguntava Cícero no De Oratore, II, 15, 62, [..] ‘para Aristóteles, tanto a história como a literatura representam uma mimèsis: ‘ imitação’ ou melhor, ‘representação’ de uma ação temporal [..] truismos psicológicos constituem muitas vezes ‘a base da explicação histórica’, abrindo uma nova brecha por onde se introduz no discurso histórico uma perspectiva determinada pela competência enciclopédica do historiador. ” ( CARAGEA,2021)

Iniciar um texto a partir de uma citação tanto serve para indicar de onde partimos quanto aonde pretendemos chegar, apesar do horror que isso possa produzir em determinados meios mais ortodoxos.

O título também funciona como uma prévia do que está por vir, ou ao contrário, não faz o menor sentido antes da leitura do texto.

O ano de 2021 marcou uma ocupação histórica, em todos os sentidos que o termo possa abrigar, primeiro pelo ineditismo, segundo por ter sido produzida por historiadores, terceiro por tais historiadores e historiadoras serem pessoas negras (Rede de Historiadorxs Negrxs) e quarto pelo espaço ocupado, a imprensa nacional de forma massiva, ativa e articulada, e não algo restrito e intramuros da academia.

O “pero no mucho” do título, é pelo fato de apesar dos textos terem sido produzidos por historiadores e tratando de questões no âmbito da consciência negra, as abordagens não se mantiveram integralmente no estilo e cânones da escrita acadêmica e de nicho a que muitos e muitas estavam acostumados ou restritos, escrever para um veículo de comunicação e ainda mais com alcance fora de suas localidades foi uma experiência inédita, ou ao menos rara.

O “isso é ótimo”, tem duas motivações, a primeira porque “destravou” o literário “mais pop” de alguns, afinal, uma das grandes “mágoas” da classe é o fato da produção textual ser um tanto “antropofágica” ou “endogâmica”, ou seja, de consumo “interno” da academia, não chega ao “povão” nem torna ninguém “celebridade” popular festejada, como por exemplo os jornalistas que escrevem sobre história, ou alguns intelectuais que tem mídia para além de suas especificidades temáticas e de área.

A segunda é do ponto de vista da efetividade ativista. Ao contrário dos mais antigos, que do ativismo alcançaram as universidades, entre os mais jovens, a maior parte alcançou o ativismo a partir da universidade e com toda uma carga de limitações e “cacoetes acadêmicos” que os fazem mais negros intelectuais, do que intelectuais negros.

A diferença nos dois conceitos últimos é que os primeiros tem mais ou exclusivo compromisso com a atuação acadêmica ou literária do que com ativismo, a atuação acadêmica é fim, e isso em si não é problema, ninguém é obrigado a ser ativista.  Já os segundos, em sentido contrário tem como alvo primário a causa, até podem estar ou ter passado pelo meio acadêmico para fins profissionais, mas suas atuações acadêmicas tem também ou grandemente a função de reforçar o ativismo e os acessos sociais necessários, são predominantemente meio, não fim.

E no que isso impacta ? Esse “desencastelamento acadêmico” faz a luta negra pragmática ganhar mais efetividade, penetração popular e qualificação. Não porque já não houvessem pesquisadores negros na luta. Vide a multi e interdisciplinar ABPN – Associacão Brasileira de Pesquisadores Negros, a qual congrega gente de variadas áreas, das exatas passando pelas ciências humanas e sociais até as ciências biológicas, mas porque nela o “espírito” de intelectual negro predomina. É o que faz por exemplo profissionais de Química ou Engenharia, produzirem textos próximos das análises das ciências humanas e sociais, porém de forma mais popular, posto que apesar da capacidade de escrita científica, essa só é utilizada em publicações da própria área de formação ou muito eventualmente quando exigido em trabalho extra-área.

Por outro lado, quem já é de áreas que trabalham problematizações histórico-sociais, excluída a de Comunicação, tem por conformação, uma certa dificuldade em se desvencilhar do modo acadêmico, o que gera um afastamento “natural” do popular, e a história está dentro desse círculo. Daí a diferença de resultados entre historiadores por formação escrevendo e os jornalistas que escrevem sobre história, por exemplo.

Apesar de toda a diversidade teórica e embates circulantes na área, como historicismo, historicidade, usos práticos do passado, transgressão…, ainda não é fácil ao historiador, ainda mais em “estilo padrão”, sair da bolha e alcançar a mídia. A ocupação inédita, não o é apenas no âmbito dos Historiadorxs Negrxs, é também no geral de toda a classe.

Vendo o balanço da ação, fica bem claro que apesar do embate milenar entre História e Literatura, como visto na citação que abre o texto, não é impossível um uso prático da História com consumo popular, além de textos não necessariamente históricos, mas também do debate social, levada pelos próprios Historiadores ao grande público, com ares de literatura, leve, não necessariamente tão precisa e referenciada a cada parágrafo, mas com historicidade. Novos horizontes, novos horizontes…

 

Referência: CARAGEA, Mioara. HISTÓRIA. Verbete in E-Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/. Acesso em: 26 nov. 2021.

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