Dear white people (ou Cara gente branca), isto não é com vocês…
Primeiramente calma!, antes que alguém imagine bobagem, cabe explicar que a ideia do texto é comentar a série ‘homônima’ da Netflix, não um ato de “autosegregação” , “exclusão”, “racismo reverso” , ou “silenciamento via distorção da ideia de ‘lugar de fala’ ”.
Assisti aos dez capítulos em sequência ao longo do domingo, a série é muito boa, engraçada e lida bem com todas as problematizações envolvidas. Tem como base um grupo de estudantes negros de uma universidade de elite norte-americana, que em níveis e formas variadas, fazem militância contra o racismo no ambiente em que se inserem. Especialmente a partir de um programa de rádio comunitária, comandado pela aguerrida SAM e que com o mesmo título visa conscientizar os estudantes brancos de seus privilégios enquanto brancos, e sobre práticas que os mesmos não percebem racistas.
Na realidade, mais que fazer um “letramento racial” (busque no Google… ;)) para brancos, a série acaba por expor uma radiografia do universo militante negro em um contexto bem delimitado, o dos jovens universitários, que em grande medida se sobrepõe ao que tenho chamado de “neoativistas”. É portanto mais interessante e útil a fim de fomentar reflexões para os jovens ativistas sobre suas atuações e premissas (muitas das quais equivocadas e não percebidas), do que levar pessoas brancas a realmente entender como colaboram com a manutenção do racismo. Dai o complemento no título do texto, “isto não é com vocês”.
Descontadas as limitações e peculiaridades do contexto, ou seja, negros e negras norte-americanos em uma universidade de elite, praticamente todas questões que perpassam a militância negra brasileira estão lá, principalmente as da jovem militância:
- Estereotipização, os vários ‘tipos” de militantes, seus paradigmas e demandas.
- Aflições identitárias, como a questão da origem miscigenada, estéticas, “padrões” a seguir enquanto negr@.
- Colorismo, a falácia do “negro de verdade” X “ o meio branco”, o “movimento preto” X movimento negro.
- Incoerências, como a apologia e “cobrança” de uma endogamia compulsória e crítica aos relacionamentos interraciais, quando se mantém relacionamentos interraciais… .
- Fragmentação de causa, vários “coletivos” com interesses e paradigmas distintos.
- Radicalismo versus pragmatismo, Malcom X versus Luther King.
- Dificuldades de interlocução e integração, não apenas entre os próprios coletivos ou ativistas independentes, mas entre gêneros, gerações e com aliados não-negros.
- Os aliados brancos “descontruídos” e bem intencionados, aproximações e alijamentos.
- Apropriações culturais e Blackface.
- “Textões lacradores” .
- Multidentitarismo e microidentitarismo, a combinação com outras identidades e causas como a de gênero, a de orientação sexual, religiosa, combate a gordofobia, etc… .
- Ativismo virtual, o pessoal que “milita” praticamente só via hashtags .
- Violências policiais, físicas e psicológicas.
- As cobranças de “perfeição” e de uma “superhumanidade” d@ negr@, para ser aceito/considerado.
- O embranquecimento cultural e a mobilidade social.
- A “solidão da mulher preta” .
- A autoalienação e tentativa de não enxergar o racismo.
- As reações contrárias e o metaracismo (racismo cínico disfarçado de antiracismo) vindos de conservadores e suas acusções de “racismo reverso” .
- A relação com africanos, e as dificuldades destes para com a problemática afrodiaspórica.
- O uso deturpado do conceito de “lugar de fala”, utilizado como “silenciador/inibidor” de participações “alienígenas” ao recorte, e questionado por isso… .
Enfim, é uma excelente fonte para quem se interessa pelo estudo de relações raciais, mas principalmente para quem quer visualizar as aflições e vicissitudes da militância negra em sua neoatuação.
Não sei se a série terá no Brasil a mesma má recepção que teve no lançamento nos EUA, aonde muita gente (branca) se sentiu ofendida, mas espero que pelo menos sirva para chamar ainda mais a atenção sobre um assunto que boa parte dos brasileiros acredita não precisar conhecer e refletir sobre.