Cotas no Serviço Público, entendendo o porque…
A discussão sobre as cotas universitárias para negros (pretos+pardos) levou anos, amadureceu e a ideia finalmente teve manifestação favorável nos três poderes da república, hoje as cotas universitárias são uma realidade implantada, em crescimento e perfeitamente legal.
Será porém que apenas elas bastariam para resolver toda desigualdade entre negros e brancos que impera em todos os níveis e esferas da sociedade brasileira (notadamente nos mais elevados) ? , não é necessário um grande exercício de observação e lógica para perceber que não.
Os processos seletivos que excluem os negros (principalmente os pretos) estão por toda a sociedade, aquém e além da mera graduação superior, portanto apenas as cotas universitárias não dão conta de eliminar ou reduzir drasticamente esse bastião da desigualdade.
Assim como no caso do vestibular ou outras formas de acesso universitário, muitos irão arguir que o acesso ao serviço público (principalmente o por concurso) não faz distinção de cor, quem estuda e passa entra… (o que de fato ocorre), a questão é quando, como e para quê ? .
Se você olha para as funções públicas mais subalternas, verá muitos negros (até mais que brancos, vejamos por exemplo os garis, a cota nesse nível seria desnecessária), mas essa concentração vai rareando cada vez mais à medida em que se avança rumo ao topo das carreiras públicas (por exemplo Oficiais das Forças armadas, Magistrados, Servidores de alto escalão), como diria o grande antropólogo Kabengele Munanga, nesse nível “são sempre os primeiros e/ou os únicos”, como resolver tal desequilíbrio ?
Quais são os motivos para isso ?
São muito parecidos com os motivos que tornam o acesso à graduação muito mais penoso para os negros, mas envolvem alguns itens extras e muito peculiares, ou seja, ainda mais complicadores.
1- A esmagadora maioria dos negros que chegam a uma universidade, são também trabalhadores, em geral trabalham de dia e estudam à noite, em geral em faculdades privadas, já no nível médio a maioria estuda na rede pública.
2- Por virem de faculdades privadas (em geral com foco no ensino, sem privilegiar a pesquisa e a iniciação científica), de estudo noturno conciliado com trabalho, e a óbvia ausência do “networking pessoal” adquirido na graduação pelos que cursam universidades públicas, tem muito maior dificuldade de acesso as pós-graduações stricto sensu (em geral disponíveis nas universidades públicas, sem contar o corporativismo em tais instituições, ainda há a famigerada entrevista, que subjetivamente alija do processo a maioria que se habilita), isso reverte em menores pontuações nas provas de títulos dos concursos públicos.
3- Pelo perfil de estudante/trabalhador, o negro chega mais tarde à universidade e tão logo se forma, busca o mercado de trabalho com urgência (em geral o privado), encontrando ai uma das piores barreiras…, quando consegue se encaixar, tem que priorizar o trabalho ao invés da continuidade da qualificação acadêmica, isso faz com que também chegue muito mais tarde à pós-graduação, ao mesmo tempo em que apenas atuando profissionalmente se distancie dos novos ou atualizados paradigmas teóricos/tecnológicos da academia (que são justamente os que pautam os concursos públicos), ou seja, apesar de mais velhos e experimentados na prática, tem grande desvantagem em relação aos candidatos mais jovens e brancos que se formam mais cedo e podem privilegiar a continuidade dos estudos, ao invés da prática de mercado.
4- Por tais motivos os negros que logram êxito em aceder ao serviço público, em geral tem idade bem mais elevada que a de seus pares brancos.
5- Até então falamos da questão dos concursos públicos, mas ocorre que nem todo o serviço público é feito de efetivos (concursados), aliás os melhores cargos públicos são os comissionados ou “de confiança”, que teoricamente tem a seleção baseada em curriculum, mas na prática são preenchidos de acordo com as relações pessoais, de parentesco ou profissionais estabelecidas com autoridades do poder público e do meio político; por razões óbvias, mesmo que o negro possua curriculum mais que satisfatório para determinado cargo, ele está muito mais “distante” das tais “relações” que favorecem as nomeações, do que um candidato branco (como a maioria das autoridades que influenciam as nomeações ).
Voltamos então ao princípio de todas as ações afirmativas, dar oportunidade justa aos que “concorrem igualmente”, mas sem as mesmas condições competitivas de fato, não se trata da capacidade pessoal, mas de uma conjuntura que faz uma pessoa negra precisar ter muito mais capacidade e esforço que uma pessoa branca para poder se “igualar” a ela (o que obviamente não é justo).
O desequilíbrio entre brancos e negros no serviço público é evidente, tão evidente que é possivel destacar fácil e nominalmente os negros de alguma proeminência na maioria das carreiras públicas, coisa que não ocorre com os brancos, ou seja, não são os casos excepcionais que “provam” uma “democracia racial” no serviço público, de forma contrária demonstram que, a maioria dos negros no serviço público (principalmente nos melhores cargos) são ” ILHAS de excepcionalidade cercadas de brancos por todos os lados” .
É justamente por todo o exposto e visando corrigir de forma rápida essa distorção (que não se corrigirá rápida e naturalmente), que se fazem necessárias medidas impositivas que garantam a presença negra proporcional em todas esferas do serviço público, a ferramenta para isso se chama COTA.
:-), Olha só que interessante, estava falando disso há pouco mas não sabia do que havia acontecido hoje… olha só a notícia : http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/11/1367383-dilma-encaminha-ao-congresso-projeto-que-cria-cotas-no-servico-publico.shtml
Juarez, as cotas jamais vão possibilitar um equilíbrio justo, apenas vai minorar as diferenças, fazendo com que elas não pareçam tão distantes. E olha que eu defendo as ações afirmativas como elemento de aprofundamento das contradições do racismo das elites e classes médias brancas, como elemento conscientizador para a maior parte do nosso povo [que não acredita], que o racismo existe e é estrutural da sociedade capitalista. Entretanto, no seu próprio artigo, vc reconhece as dificuldades para os negros [apesar de um certo de equilíbrio numérico, de ambos os seguimentos], os melhores cargos ainda são nomeação e confiança. Mas há um aspecto que vc não considerou, que funções exercem os negros no serviço publico, e porque? O concurso é publico, mas a seleção definitiva é feita na entrevista, e ali, qualquer critério subjetivo desclassifica um/a negro/a. Portanto, as ações afirmativas não são o remédio pra todos os males, sobretudo elas não proporcionam consciência, reconhecimento ou solidariedade dos beneficiários com os que lutaram por elas, ao contrario, reforça o individualismo, a não adesão a identidade negra, ao branqueamento dos contemplados, propiciando ainda mais a desorganização do nosso povo, em futuro breve, em uma sociedade individualista, consumista, alienada e pouco solidária. A proposta das Cotas é somente o conceder os anéis [pelas elites], para não perder os dedos! É criação e a integração de uma classe média qualificada, que negue [e se negue] à luta contra o racismo e à solidariedade com os iguais. Pense nessas palavras: Reparação Históricas e Humanitárias. Aliás, que não é a mesma coisa que Ações Afirmativas. Reginaldo Bispo-Movimento Negro Unificado-MNU de Lutas, Autônomo e Independente, de partidos e governos.
Salve Bispo !, grande honra ter você aqui pelo blog.
Vejo a questão da mesma forma que as cotas universitárias, mais do que garantir uma representatividade proporcional negra na universidade pública, é garantir tal representatividade em TODOS os cursos… e não apenas nas licenciaturas e cursos que dão menor mobilidade social, semelhante no caso do concurso público é permitir representatividade justa também em carreiras e cargos aonde tradicionalmente isso não ocorre.
Quanto as entrevistas finais de concurso, elas não eliminam o candidato aprovado (diferente por exemplo das entrevistas para a pós stricto sensu, ou das bancas para professores universitários), em geral apenas determinam a melhor lotação (ou mais interessante para a Administração) nos casos em que há distintas lotações para um mesmo cargo.
Como eu disse, a questão é garantir ao menos a entrada nas carreiras, já que as promoções por mérito e os cargos em comissão vão depender da capacidade individual de cada um driblar o bloqueio do racismo institucional, estabelecer as relações certas e estar preparado para construir e agarrar oportunidades.
Não creio que as AA não influenciem na conscientização e reforço identitário dos beneficiados, na realidade os que tentam negar e fugir da identificação e/ou são alienados na maioria não se submetem a pleitear vagas de AA (é claro que há oportunistas que mesmo sem fazer jus, tentam, mas no frigir dos ovos, são esmagadora minoria, que não invalida as inserções justas que ocorrerem), a minha experiência prática com cotistas universitários indica que a própria consideração de pleitear vagas de AA, leva a reflexões e engajamento que as vezes antes não haviam despertado.
Óbvio que cotas, além de paliativo, não cobrem todas as nossas demandas, precisamos de ações de fomento ao emponderamento e redução da estigmatização/discriminação, mas do ponto de vista prático e imediato é de fato a única solução efetiva de inclusão que pode superar as barreiras colocadas de forma subjetiva ao acesso negro.
Bom, é isso, dada toda a resistência, dois passinhos para a frente é melhor que ficar parado ou andar para trás…
Abração Bispo !