PL 180/2008 traz mais benefícios do que problemas.
Republicando aqui no blog, elucidativo artigo de meu companheiro de luta virtual de longa data, Francisco Antero (ou simplesmente Chico) que é também Servidor do Judiciário, tendo passado pelo TJCE, TJSP e atualmente está no TRF/3, é Bacharel em Direito pelo Mackenzie e ativista pelas AA e combate ao racismo.
PL 180/2008 traz mais benefícios do que problemas.
Por Francisco Antero.
Escrevi recentemente artigo onde criticava o PL 180/2008. Porém, analisando mais detalhadamente o teor da lei e em confronto com o que fora publicado pela imprensa, este PL traz mais avanços do que retrocessos levando em conta o conjunto da população brasileira.
Tenho de dar a mão à palmatória por ter acreditado na imprensa, e não apenas em qualquer imprensa, mas em órgão do Correio Braziliense quando o mesmo menciona em sua matéria: “Aprovado no Senado na noite da última terça-feira, o escopo do projeto de lei das cotas divide as vagas meio a meio — 25% do total serão destinadas aos estudantes negros, pardos ou indígenas, de acordo com a proporção dessas populações em cada estado baseada em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto a outra metade será destinada aos estudantes que tenham feito todo o segundo grau em escolas públicas e cujas famílias tenham renda per capita de até um salário mínimo e meio. Os 50% restantes continuam abertos para livre concorrência.”(1)
Mas a lei diz em seu artigo 3º “Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).”(2). E o artigo 1º assim prescreve: “Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.” Desta forma, não há que se falar em recorte racial dentro dos 25% como diz a matéria do Correio Braziliense, mas dentro dos 50% a partir da lei aprovada no senado.
O que pode ter provado uma incompreensão é a redação do parágrafo único deste artigo 1º, o qual menciona ser a metade das vagas reservadas pela Lei destinada ao critério econômico sem mencionar aí o quesito racial. De minha parte também me policio e me penitencio por não ter ido com mais afinco a literalidade da lei aprovada. Já devia saber que nossa imprensa nesta seara, a da questão racial, não tem a mínima credibilidade.
Após este introito passemos a analisar de o porquê este PL pode ser considerado um avanço de inclusão racial em universidades públicas federais. De antemão tenho de explicar algo que foge das preocupações de nossos jornalistas, o uso indiscriminado e impossível da soma de negros e pardos, quando o correto segundo o IBGE é a soma de pretos e pardos. Em nenhuma passagem da lei usa-se o termo ‘negro’, pois o legislador foi bem assessorado por alguém ou por sua própria inteligência sobre como é classificado o seguimento negro em nossa sociedade segundo o instituto. É possível que a imprensa tenha dificuldade no uso da palavra ‘preto’ imaginando estar cometendo “um crime”. Usarei os critérios estabelecidos pelo IBGE na classificação da população brasileira, ou seja, negros segundo o IBGE é a soma de pretos e pardos.(3)
Inicialmente tomarei como exemplo os estados onde se concentram o maior número de negros e aí verificar um novo cenário mínimo de matriculados, comparando com uma realidade anterior. E depois apresento os estados onde o sistema de cotas poderá ser prejudicial em relação à sistemática atual.
Comecemos por São Paulo. Neste estado a população de negros está na ordem de 12.500.000 (32% do total do estado). Neste caso tomando como base a UNIFESP, 9% de suas vagas em cada curso são disponibilizadas para as cotas raciais seguindo a autonomia universitária que rege o sistema de ações afirmativas. O PL fará com que este percentual aumente para 16%, pois o percentual de 32% (proporção de negros em SP) será aplicado sobre 50%. (O caro leitor deverá sempre aplicar o percentual de negros na federação sobre 50% das vagas em todos os demais casos)
Em Minas Gerais, 10.400.000 negros (53% do total do estado), sua principal universidade federal, a UFMG, não tem cotas raciais, mas um programa de Bônus. Ou seja, um percentual X acrescentado à nota para quem vem de escola pública e um percentual X+Y para quem vem de escola pública e se autodeclara preto ou pardo. O problema deste sistema diz respeito à possibilidade de quem não tem direito ao Bônus procurar tirar uma nota muito superior aos bonificados e assim procurar anular os efeitos deste sistema de ações afirmativas. Pois bem, com a adoção do PL 180 para a UFMG, o que antes era imprevisível o número de negros matriculados em cada curso, agora teremos a certeza que no mínimo em cada curso, a possibilidade de serem matriculados negros e negras é certa, ou seja, 27% de negros em cada curso. Da imprevisibilidade de terem negros, por exemplo, num curso de medicina, agora podemos ter 27%.
No estado da Bahia, 10.800.000 de negros (82% do total do estado), a reitora foi feliz em afirmar que apenas serão feitos alguns ajustes. Neste estado, o percentual do IBGE pelas regras atuais se abate sobre 45% das vagas, com a introdução da nova lei, o percentual do IBGE se abaterá sobre 50%. Assim em cada curso haverá um acréscimo de matriculados, passando de 38% para 40%.
No Rio de Janeiro, pouco mais de 7.000.000 de negros (46% do total do estado), o grande alvo é a excludente UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, que disputa no tapa com a USP para saber quem exclui mais negros e negras dos cursos mais concorridos. Até que depois de muita pressão, o conselho desta universidade resolveu adotar cotas, mas sociais. Raciais eles desprezam. Assim sendo, num ambiente em que a possibilidade de ter turmas com a ausência de negros segundo as regras estipuladas por sua autonomia, com este PL aprovado, temos a oportunidade de vermos matriculados em cada curso, em cada turma um percentual mínimo de 24% de negros aprovados.
No estado do Pará, a população está em torno de 5.400.000 de negros (77% do total do estado) e haverá um leve declínio passando dos atuais 40% em cada curso e turma, em face do sistema de cotas implantado, para 38% ou 39% com a introdução dos critérios adotados pelo PL 180/2008.
Em Pernambuco e no Ceará a população de negros em cada estado está na ordem de 5.300.000 (62% e 65% respectivamente do total geral). Não existem ações afirmativas pelo recorte racial. Apenas em Pernambuco tem uma bonificação social. Com o PL teremos uma grande revolução, ou seja, passaremos a ter em cada universidade 31% e 32% de matriculados negros – respectivamente – em cada curso e turno.
Para encerrar estes primeiros exemplos, temos o estado do Maranhão, com uma população de 4.600.000 de negros (75% do total do estado). O sistema de cotas raciais aplicado pela universidade promove a inclusão em cada curso e turno um percentual de 25%. Com a introdução das regras previstas no PL 180, teremos um aumento para 38% em cada curso e turno.
Por outro lado, abro um parêntese para analisar os três estados onde este PL poderá promover um decréscimo de vagas para negros, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
No estado gaúcho há em torno de 1.700.000 de negros (16% do total do estado). Em sua principal universidade UFRGS há uma previsão de 15% para negros. Com o PL este percentual cai para 8% das vagas abertas destinadas para negros.
Em Santa Catarina, 700.000 negros (12% do total do estado), há previsão em cada curso de 10% para autodeclarados negros. Com o PL este percentual beneficiado em cada curso e turno ficará em torno de 6%.
E finalmente o estado do Paraná, um estado com 2.660.000 de negros (26% do total do estado). Na situação atual, sua principal universidade federal, a UFPR, prevê 20% autodeclarados negros. Com a sistemática a ser implantada, a previsão ficará em torno de 13%.
Estes três exemplos de perda não tem o condão de tornar ineficaz a inclusão racial no Brasil como um todo. Não existe sistema perfeito que atenda a todos quando estamos diante de número estatísticos. É um sacrifício a ser suportado por poucos em prol da maioria.
Como podemos notar, o percentual de cotas nos estados onde a população de negros é mais elevada fica distante dos números do IBGE, mas não podemos deixar de observar uma grande mudança no Brasil como um todo. Mas de 100 anos de mentiras e massacre psíquico pós 1888 talvez tenha brecado uma demanda por um maior número de vagas. Estamos numa transição e temos de aproveitar o máximo possível os efeitos desta lei que nasce única e exclusivamente por pressão do Movimento Negro – O legislativo é consequência desta pressão.
Após a análise destes exemplos aqui trazidos, devemos nos ater ao disposto no artigo 8º da referida lei quando menciona: “As instituições de que trata o art. 1º desta Lei deverão implementar, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da reserva de vagas prevista nesta Lei, a cada ano, e terão o prazo máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o cumprimento integral do disposto nesta Lei.”(2). Acredito que a pressão do movimento negro obrigará que nenhuma universidade espere para por em prática apenas no último ano o previsto nesta lei.
E para encerrar este artigo, ressalto que esta lei não se dirige apenas a negros, mas também às demais etnias não-negras e também ao grupo indígena deste país. Esta lei se abraça ainda às instituições federais de ensino médio e técnico no Brasil.
(1):http://www2.correioweb.com.br/euestudante//noticias.php?id=31609
(2):http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=112667&tp=1&fb_source=message
(3): http://www.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf
Só complementando a questão, no Amazonas , onde já há cotas na UEA ( para todas situações menos para negros) e na UFAM ( onde as únicas cotas são a do PSC-Processo Seletivo Contínuo, que beneficia majoritariamente estudantes oriundos do ensino médio particular, e a para indígenas em alguns cursos de pós-graduação) , a lei será especialmente benéfica, mas deve haver alguma reação/ confusão pois segundo o IBGE (Censo de 2010) a população amazonense é composta de : brancos (21,24%), pretos (4,13%), pardos (68,88%) indígenas (4,84%) e amarelos (0,91%), como a POPULAÇÃO NEGRA é tecnicamente a soma de pretos e pardos, daria 73,72% … ; ocorre porém que em se tratando de 98% do Brasil isso é uma composição correta, porém no norte do país (8% da população nacional) a maioria dos pardos é de origem indígena e não afrodescendente…, o fato do IBGE ainda adotar a categoria pardo de forma “abrangente” (ao invés de adotar a origem ancestral , por exemplo afrodescendente ou nativodescendente ) dificulta a leitura correta e direta da proporcionalidade afrodescendente na região e no estado…, por padrão e extrapolação podemos dizer que em todos estados onde não há essa questão, o percentual de pardos é em média 5 vezes maior que o de autodeclarados pretos (e não há razão para ser diferente aqui no AM), sendo assim no Amazonas os “pardos afro” seriam na realidade coisa de 21%, que somados ao pretos daria então uma população afrodescendente de ~ 25% (1/4 da população, maior inclusive que a população branca), sendo a população parda de origem indígena na ordem de 53,8% (maioria da população) .
Como a lei fala em autodeclaração por cor (preta ou parda) na sub-reserva proporcional dentro da reserva de 50 % para escola pública (e não na autodeclaração como negro ou afrodescendente) não deve haver prejuízo nem para pardos de origem afro bem como para os de origem indígena… , ou seja é bom para todos; mas tem que ser muito bem explicado para evitar confusões e equívocos.
As incorreções ou inexatidões não se limitam aos dados da população do Amazonas ,erros semelhantes se repetem em todo o Brasil,porém, relacionados a população afrodecendente; e o problema também está nas atitudes dos negros e não apenas nas opções disponibilizadas pelo IBGE. Basta lembrar da declaração do Ronaldinho Fenômeno a poucos anos atrás dizendoque era branco. Com certeza que outros negros/pardos como ele tem a mesma falta-de-noção na hora do recenseamento. Outra coisa que considero um grande equivoco é acreditar que no Brasil tem só 7,61% de negros/pretos; é óbvio que os negros com aquele biotipo africano mais acentuado são bem mais do que 7,61% da população brasileira, mas isso não aparece nos numeros do censo porque boa parte dos “pretos” não assume o seu biotipo.Tanto é verdade que no penúltimo censo (2000) o IBGE encontrou apenas 13,1% de pretos no estado da Bahia ,onde a população é 80% afrodescendente.
Pois é Adriano, essa questão tem bases históricas, ajudada pela estigmatização da condição e dos termos negro e preto…, pela base histórica é que o termo pardo foi criado no censo de 1872 simplesmente para contar separadamente negros livres e libertos (e preto era utilizado para os ainda cativos), ou seja, pardo não era exatamente uma classificação de cor mas sim de condição social (a de pessoa livre em contraposição à condição de escravo, claro que ambas associadas diretamente a ascendência africana).
Sendo assim é compreensível que desde aquela época muitas pessoas de cor preta se colocassem como “pardas” já que isso na realidade significava que tinham tido um “upgrade social”, tal fato é corroborado pela inegável alta miscigenação (desde a “compulsória” com a exploração sexual de índias e das escravas negras no passado, passando pela motivada por abuso econômico e social no pós-abolição até a esperada e “natural” em um país multi-racial como é caso do Brasil recente), e por fim pela atual fuga da estigmatização como negro; dai a importância do termo afrodescendnte (mais politicamente correto, menos estigmatizado e mais amplo pois “cobre” tanto pretos quanto pardos em uma identidade baseada na origem ancestral africana e na realidade dos indicadores sociais igualmente distanciados da população branca).
Sou da opinião que classificar por ancestralidade é muito melhor doque pela cor. Mas achoo que o termo ‘negro’ não é tão estigmatizado quanto ‘preto’ ,e tem aceitação bem melhor. Se o IBGE fosse considerar só a ancestralidade para nos classificar, teríamos as opções : branco, negro (sem distinção de pretos e pardos), indígena, e oriental (invés de amarelo), e acho que assim acabaria o problema que acontece na região norte, de falta de distinção entre as pessoas de cor parda afrodecendentes e nativodescendentes. Mas já existe algum projeto para alterar a forma como os brasileiros se declaram ,excluindo as declarações de cor, ou vamos continuar com as mesmas opções indefinidamente?
Adriano, são três os grandes problema com o termo negro:
1- Ele é diretamente associado à condição de escravo\descendente (o que por si só gera um bom estigma) .
2- Ele (assim como branco, índio, amarelo…) ajuda a perpetuar tradicional visão “racialista” (classificação baseada na ultrapassada ideia de “raças” biologicamente distintas).
3- Por mais que se divulgue, as pessoas sempre vão fazer confusão achando que negro e preto são sinônimos… ou ainda que “negros” são apenas os de fenótipo tipicamente africano (pretos), reforçando outra ideia equivocada (a de que os miscigenados formam um “outro grupo”) acabando por enfraquecer a causa como um todo e ajudando a manter a balela de que a miscigenação tornou e torna o Brasil uma “democracia racial” .
A classificação por ANCESTRALIDADE GEOGRÁFICA (ou seja, continente de origem dos ancestrais majoritários), obrigatoriamente retira os velhos termos e elimina as confusões, ex. a maioria das pessoas (brancas ou negras) consegue entender o que é afrodescendente, sendo que o negro “não-preto” se auto-enquadra dentro do conceito com muito menos resistência do que há em relação aos termos negro e pardo, por outro lado muitas pessoas confundem cor da pele com a origem, existem muitos negros de pele claríssima (que sabem que são negros, mas se perguntados pela cor respondem que tem “pele branca”) o que acaba “inflando” o número de “brancos”, se ao invés de branco se utilizasse EURODESCENDENTE, a maioria destes “negros de pele branca/quase branca” não iria se definir como tal…
O problema com os “pardos do norte” é justamente que a maioria não é nem quer se autodeclarar como “negro”, também não querem e não podem tecnicamente ser automática e indistintamente agrupados aos indígenas (situação que só cabe aos que tem vínculo étnico definido (sabem sua tribo, língua, etc…) e principalmente pelo RANI-Registro de Nascimento Indígena, documento expedido pela FUNAI aos que nascem em tais condições), por tal motivo é que precisa ter uma categoria NATIVODESCENDENTE (abrangente e que incluiria os pardos de origem indígena) acrescida de subdivisão ou complemento de especificidade ETNIZADO (que seria o que hoje chamamos de indígena).
O uso da ANCESTRALIDADE GEOGRÁFICA já foi proposta e discutida no IBGE, pensei que iria entrar já no CENSO 2010, mas não aplicaram, quem sabe iniciem paulatinamente a usar nas PNADs até chegar ao CENSO de 2020 com isso resolvido.