9 de novembro de 2024

 

 30 Set 2009 

Luciana Abade, Jornal do Brasil

 BRASÍLIA – Os juristas brasileiros ignoram o crime de racismo. Por isso, a cada 17 denúncias de racismo, apenas uma vira ação penal no Brasil. Pior: no Rio, entre as que viram, 92% delas não são enquadradas como racismo, mas interpretadas, na esmagadora maioria dos casos, como injúria. A constatação é da tese de doutorado Direitos humanos e as práticas de racismo, defendida semana passada na Universidade de Brasília (UnB) pelo pesquisador Ivair Augusto dos Santos, que analisou processos e sentenças judiciais em 18 capitais brasileiras. De maneira geral, na maioria das vezes o crime de racismo é desconfigurado como tal, o que abranda a pena do agressor, que pode ter liberdade mediante fiança. O crime também deixa de ser imprescritível com a suavização da interpretação legal dos juízes.

– Minha pesquisa constata que há racismo institucional no Brasil – afirma Santos. – E, apesar da dificuldade em comparar, é fato que os danos do racismo institucional são enormes. Um exemplo é a polícia que sempre aborda primeiro o negro.

No Rio, o número de denúncias de racismo segue uma onda crescente. Foram 1.886 ações de racismo em 2005, 2.773 em 2006 e 1.549 no primeiro semestre de 2007. O número de processos no estado é consideravelmente superior aos dos outros estados. Entre 2003 e 2006, foram apenas 10 casos em Alagoas, por exemplo. Entre 2002 e 2007 Pernambuco registrou 63 casos e Rondônia teve 18 processos nesse mesmo período. Os números sobem na Região Sul. Foram 267 processos no Rio Grande do Sul e 837 em Santa Catarina.

“Permanecendo somente com os dados fornecidos pelo Tribunal de Justiça do Rio, revelou-se uma sociedade carioca que convive com milhares de situações de racismo no seu cotidiano e ignora, minimiza e acaba deixando uma lacuna ética, com efeitos perversos para o conjunto da população negra”, diz trecho do estudo. Segundo o pesquisador, os números de processos aumentam nas capitais onde há mais escolaridade porque pessoas instruídas tendem a lutar mais pelos seus direitos. No caso específico do Rio, além da alta escolaridade, Santos destaca a forte atuação do movimento negro.

O trabalho desenvolvido em 11 estados por organizações não governamentais que prestam assistência jurisdicional às vítimas de racismo foi a base da pesquisa de Santos. De acordo com essas ONGs, que atuam desde 1984, a tipificação do crime de racismo no Brasil é precária e inadequada e a população negra é tratada com descaso pelas autoridades policiais que não acreditam que possam ser punidas por não darem a pessoa negra o devido tratamento de cidadão.

Ainda segundo as ONGs, se a discriminação racial fosse objeto real de atenção judicial, diante de uma denúncia desse tipo caberia à parte acusada demonstrar a ausência de discriminação. Na fase do inquérito judicial, as ONGs constatam um despreparo dos delegados e demais policiais para investigarem este delito, previsto desde 1951 como contravenção penal.

Para o pesquisador, as dificuldades que a população negra enfrenta em acessar as instituições que compõem o sistema de Justiça decorrem de um conjunto de fatores econômicos, sociais e culturais. Por isso, quando o delegado, promotor ou juiz classifica uma ação penal de crime de racismo como injúria qualificada, os efeitos são imediatos para os cidadãos, pois uma ação pública passa ser uma ação privada, que exige a contratação de um advogado ou cai na dependência de um defensor público. E, “como a maioria da população negra se encontra entre os mais pobres da população brasileira”, boa parcela das vítimas não tem condições de pagar um advogado, explica Santos.

– É muito difícil provar a discriminação racial no Brasil porque quem tem que provar o dolo é a vítima – destaca o pesquisador. – E os juízes não veem o crime de racismo porque não aceitam o fato de que há racismo no país. Muitas vezes as agressões são entendidas como brincadeiras. Não existe a menor sensibilidade da Justiça para o quanto isso é doloroso para quem sofre o preconceito.

“Nega preta, fedida, fedorenta, macaca, passa-fome”, “retire-se daqui sua macaca”, “negro nojento, negro que tinha que ficar na chibata”, “negro safado, negro sem vergonha e sem futuro”, “serviço de gente e não serviço de preto e de porco”, “negro sujo e carniceiro ” e “preto que nasceu bom, nasceu morto” são apenas algumas expressões copiadas pelo pesquisador de processos de ações penais por racismo que não foram entendidas pelos juízes como tais. Foram interpretadas como injúrias e, às vezes, como simples brincadeira. 

Sobre o autor

0 thoughts on “Uma Justiça cega para o racismo

  1. O pesquisador que chegou a essas conclusões é formado em química e pós-graduado em ciências políticas. Não tem, portanto, formação jurídica. Sua análise é sensacionalista e capenga. Existem no Brasil dois crimes distintos: racismo e injúria racial. Quando ofensas de cunho preconceituoso são destinadas a ofender uma pessoa especificamente (o exemplo citado do “Nega preta, fedida, fedorenta, macaca, passa-fome” se enquadra perfeitamente aqui) o crime é injúria racial, não racismo. Racismo precisa ser ato dirigido à raça como um todo (empresa que não contrata negros, por exemplo), não meras ofensas. Apesar das frases estarem fora de contexto, entendo que todas são injúrias raciais, não crime de racismo. Merecem a reprimenda penal adequada.

    1. Bem José Carlos, acho que a questão de que fala a matéria é justamente essa, do ponto de vista da lei e de um operador do Direito a coisa é tecnicamente vista em separado, correto; mas é justamente ai o “ponto de cegueira” .

      Ao se apegar exclusivamente aos detalhes de capitulação, pelo uso excessivo do “In Dubio pro Reu” e pela falta de uma percepção mais ampla das Ciências Sociais, Políticas e principalmente da percepção de ordem prática com ótica de alteridade ou de quem pertence aos grupos historicamente violentados ; talvez quem tenha a “formação capenga” para uma correta interpretação sejam justamente tais operadores do Direito.

      Vou dar um exemplo :
      “Surgiu, então, a noção de “preconceito de cor” como uma categoria inclusiva de pensamento. Ela foi construída para designar, estrutural, emocional e cognitivamente, todos os aspectos envolvidos pelo padrão assimétrico e tradicionalista de relação racial. Por isso, quando o preto e mulato falam de “preconceito de cor”, eles não distinguem o “preconceito” propriamente dito da “discriminação”. Ambos estão fundidos numa mesma representação conceitual. Esse procedimento induziu alguns especialistas, tanto brasileiros, quanto estrangeiros, a lamentáveis confusões interpretativas.” (Fernandes(Florestan) 1965, p. 27) “

      Extrapolando o conceito, quando o negro ou o estudioso de relações étnico-raciais fala de “racismo”, na realidade está se referindo a todo um conjunto de práticas discriminatórias que no ordenamento jurídico estão “separadas”, mas na prática cotidiana constituem um “pacote consolidado” de ofensas comuns e tradicionais aos Direitos Humanos e Constitucionais de um grupo social determinado pela origem étnico-racial.

      O resultado dessa falta de percepção mais ampla é a imensa dificuldade em se punir tanto a injúria racial quanto o crime de racismo, não se “enxerga” a injúria mesmo quando ela é clara, muito menos o racismo… e isso dado as suas características veladas (e como bem diz o texto, de difícil comprovação), apenas com uma análise baseada em enquadramento e sem uma avaliação de todo o contexto em que se dão os “crimes raciais” e o conhecimento multidisciplinar de como eles tradicionalmente se manifestam (e tentam se ocultar), a tendência é a impunidade.

  2. Expresso meu apoio às opiniões do José Carlos e do Juarez  . 
    Talvez fosse necessário regulamentar a tipificação  do crime de discriminação baseada na cor , popularmente  chamado de racismo. ( a palavra racismo expressa mais uma posição política do que científica ,de vez que sob o ponto de vista da ciência não existe raças  (isto é  subespécies) entre os humanos . Estes pertencem todos à espécie Homo Sapiens Sapiens .O que ocorre são variedades de fenótipos – ou seja a aparencia externa .
    As idéias racistas ou de racismo , são apoiadas exclusivamente em concepções que são fruto de entendimentos , ou distorções , de cunho político e filosófico, que foram , ou são ,usadas para justificar diversas formas de dominação e de colonialismo.
    O grande problema é que essa falta entendimento leva as pessoas que se sentem atingidas , e até com razão , a tentar enquadrar como racismo ofensas pessoais , que são na verdade , porém não menos grave , injúrias .
    Por exemplo , um rapaz , amigo de uma filha minha , estava revoltado e mencionou acionar por crime de racismo , um segurança de uma loja porque este o havia chamado de negro safado . Por ser uma pessoa proxima, ponderei com ele que safado era ofensa , mas negro , não . Uma pessoa não pode se ofender por ser chamado de negro . Essa palavra , ainda que imprecisa , é usada comumente para descrever pessoas cuja cor da pele seja mais escura .
    Haja vista a existencia do MNU – Movimento Negro Unificado , grupo que foi um dos precursores da luta contra a discriminação racial no Brasil.
    É importante que fique claro , para a sociedade , o que é injúria pessoal e o que é "racismo" ou "discriminação racial", pra se evitar incompreensões ou frustrações , como ocorre.
    De fato , a maior parte das pessoas tem informações truncadas e inconsistentes sobre o assunto , o que leva a diversas situações esdrúxulas, como as que se tem atualmente com um jogador de futebol que está sendo praticamente linchado publicamente pela crônica esportiva porque xingou -ofendeu moralmente – um outro atleta . Curiosamente  há poucos dias em Belo Horizonte um jogador do Atlético sofreu uma grave lesão física , que o incapacitará por meses , e quase não houve repercussão.
    Há muito mais coisa que pode ser dita mas esse não é o local nem o meio mais apropriado .

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *